sexta-feira, 2 de novembro de 2012

DA (IN)CERTEZA...

O dia 2 de novembro - dia de finados - possivelmente foi instituído como uma convenção no mundo cristão/católico por volta do século XIII , por algum destes papas: http://va.mu/YfNs. Possivelmente a tradição é uma manutenção de uma celebração dos celtas, povos que viveram entre Europa e Ásia a partir de 4 mil anos atrás. Os celtas celebravam a entrada do outono/inverno o fim de um ano em 1 de novembro, data que foi modificada no século XIII por coincidir com a celebração de "todos os santos". 
A questão da morte para os cristão passaria pelos seguintes pontos: 
No livro de Hebreus 9.27 se lê que após a morte segue-se o juízo. E Jesus contou sobre a situação dos mortos Lc 16.19-31. Nessa parte bíblica destacamos quatro ensinamento de Jesus: a) que há consciência após a morte; b) existe sofrimento e existe bem estar; c) não existe comunicação de mortos com os vivos; d) a situação dos mortos não permite mudança. Cada qual ficará no lugar da sua escolha em vida. Os que morrem no Senhor gozarão de felicidade eterna (Ap 14.13) e os que escolheram viver fora do propósito de Deus, que escolheram o caminho largo (Mt 7.13-14) irão para o lugar de tormento consciente de onde jamais poderão sair. (
http://va.mu/YfN2)
A questão incerta é que teríamos consciência após a morte, respondendo pelos nossos atos em vida, cujo principal é escolher seguir Jesus Cristo ou estar condenado. Disse Schopenhauer, em As Dores do Mundo, ser um erro acreditar  e afirmar a superioridade da moral cristã. Uma vez que honestidade, fidelidade, tolerância, serenidade, benevolência, generosidade, abnegação seriam encontradas entre maometanos, guebros (persas zoroastristas), hindus e budistas. Segundo texto do portal São Franscisco outras religiões e vertentes do cristianismo possuem em relação a morte as seguintes perspectivas: 
A) os espíritas crêem na reencarnação. Reencarnam repetidamente até se tornarem espíritos puros. Não crêem na ressurreição dos mortos.(Idem)
Esta é uma perspectiva que talvez dialogue com a percepção celta. Também imagino que os criadores do espiritismo conheceram a doutrina hindu.
B) os hinduístas crêem na transmigração das almas, que é a mesma doutrina da reencarnação. Só que os ensinam que o ser humano pode regredir noutra existência e assim voltar a este mundo como um animal ou até mesmo como um inseto: carrapato, piolho, barata, como um tigre, como uma cobra, etc. (Idem)
C) os budistas crêem no Nirvana, que é um tipo de aniquilamento.
D) As testemunhas de Jeová crêem no aniquilamento. Morreu a pessoa está aniquilada. Simplesmente deixou de existir. Existem 3 classes de pessoas: os ímpios, os injustos e os justos. No caso dos ímpios não ressuscitam mais. Os injustos são todos os que morreram desde Adão. Irão ressuscitar 20 bilhões de mortos para terem uma nova chance de salvação durante o milênio. Se passarem pela última prova, poderão viver para sempre na terra. Dentre os justos, duas classes: os ungidos que irão para o céu, 144 mil. Os demais viverão para sempre na terra se passarem pela última prova depois de mil anos. Caso não passem serão aniquilados.
Aniquilamento e predestinação, eu realmente não sabia dessa visão, eu sabia que as Testemunhas de Jeová pregam sua crença de casa em casa, principalmente no sábado pela manhã. Será que a ideia das classes justificam a proibição de transfusão de sangue?
E) os adventistas crêem no sono da alma. Morreu o homem, a alma ou o espírito, que para eles é apenas o ar que a pessoa respira, esse ar retorna à atmosfera. A pessoa dorme na sepultura inconsciente. 
O culto dos ancestrais está presente nas religiões africanas ressignificadas no Brasil pelos indivíduos e grupos escravizados. Os migrantes forçados, tragos da África chegaram ao longo de mais de três séculos, trazendo consigo somente as ideias e entre elas aquelas ligadas ao supra-terreno. Os cultos aos voduns, loas e  orixás tragos pelos sudaneses - generificação de uma linagem de escravizados vindos da região Costa da Mina especificamente os fons do Daomé e  yorubás do Benin, resistem e persistem, assim como desencadearam diversas formas de religiosidade, como por exemplo a Umbanda.  O documentário de Rentato Barbiere, O Atlântico Negro-na rota dos orixás de 1997 é uma das melhores introduções à esse respeito. Os ancestrais divinizados são cultuados diariamente nos terreiros e barracões Brasil a fora e não em uma data específica.
Particularmente creio ser importante lembrarmos e mantermos vivas as relações com nossos ancestrais. Tenho uma impressão de que tal relação pode se constituir em um aprendizado constante na relação com os mais velhos. A sabedoria dos que já experienciaram, viveram é necessária para continuar os projetos e expectativas, ainda que ressignificadas e transformadas pelo passar do tempo, pelos desafios colocados pelo momento em que cada individuo e geração vive. 
Saindo do campo da religiosidade para o campo das artes compartilho algumas obras de artistas brasileiros que tratam do tema da morte, nossa única certeza, pensada e decantada em verso e prosa por alguns de nossos antepassados.
Uma relação satírica e jocosa foi expressa pelo poeta Manuel Antonio Álvares de Azevedo nascido em São Paulo, em seu O poeta moribundo presente em Lira dos Vintes Anos, obra produzida quando certamente o poeta estava moribundo, acometido por tuberculose e pelos efeitos de uma queda de um cavalo que levou à um tumor na fossa ilíaca, operado sem anestesia e falecido aos 23 anos em 25 de abril de 1852 no Rio de Janeiro.
Poetas! amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!...
Façam dela uma corda e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
 

Cantem esse verão que me alentava...
O aroma dos currais, o bezerrinho,
As aves que na sombra suspiravam,
E os sapos que cantavam no caminho!
 

Coração, por que tremes? Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam,
Casa no marimbau a alma divina!
 

Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia...
Como o cisne de outrora... que gemendo
Entre os hinos de amor se enternecia.
 

Coração, por que tremes? Vejo a morte,
Ali vem lazarenta e desdentada...
Que noiva!... E devo então dormir com ela?
Se ela ao menos dormisse mascarada!
 

Que ruínas! que amor petrificado!
Tão antideluviano e gigantesco!
Ora, façam idéia que ternuras
Terá essa lagarta posta ao fresco!
 

Antes mil vezes que dormir com ela.
Que dessa fúria o gozo, amor eterno
Se ali não há também amor de velha,
Dêem-me as caldeiras do terceiro inferno!
 

No inferno estão suavíssimas belezas,
Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!
 

Se é verdade que os homens gozadores,
Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que no Céu sofrer os tolos!
 

Ora! e forcem um'alma qual a minha,
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a Missa!
Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/avz.html
O que me parece momentaneamente relevante no poema acima é a oposição entre juventude e velhice, inferno e paraíso. Azevedo parece remeter a um certo paganismo, um distanciamento à moral cristã, que no seu tempo era a própria moral cidadã, através da vigência do padroado.
Amargura e ceticismo é o que nos legou Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nascido em 20 de abril de 1884 no Engenho Pau d'Arco na Paraíba. Formado em Direito no ano de 1907 não advogou, viveu do magistério, ensinando português, geografia no Rio de Janeiro além de dirigir escola em Leopoldina-MG, onde morreu em 12 de novembro de 1914. Seu poema Versos íntimos compõe sua única obra de 1912, Eu. 
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Fonte: http://www.releituras.com/aanjos_versos.asp 
Em Versos íntimos o inferno parece ser o que se vive em vida, onde os mesmos que afagam são os que ferem. Me apraz esta quebra do maniqueísmo, sinto uma aproximação com a ética das cosmogonias africanas, onde não há caminho do bem e do mal, mas uma eterna coexistência presente nas ideias e nos atos das pessoas, como nos deuses e divindades.
No âmbito da prosa temos o formidável Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880-1881) de Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 - 29 de setembro de 1908). Obra considerada como  precursora do Realismo no Brasil, onde Machado de Assis nos brinda com uma narrativa de um cadáver que resolve contar suas memórias. Morto, Brás Cubas poderia não ser comedido ao tratar dos valores de sua época, época que revelava que as ideias estavam fora do lugar. Vamos ao prólogo:
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
AO LEITOR
   
QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas minimamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
Fonte: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/memorias_postumas%20de_bras_cubas.htm
É preciso ler mesmo que tenha a possibilidade de levar um papirote, conhecer a vida de Brás Cubas, prenhe de ideias fixas a dar cabriolas de volatim.
Para finalizar reforçamos a veia satírica com a valsa de 1940 Romance de uma Caveira de autoria de Chiquinho Sales (1909) e gravada por Alvarenga e Ranchinho, Murilo Alvarenga (1912-1978) e Diésis dos Anjos Gaia (1913-1991) respectivamente.

Enfrentar a morte de frente pode ser uma boa possibilidade para diminuir a angústia dessa nossa única (in)certeza - que a vida findará a qualquer instante.
É preciso, ainda, lembrar que os antepassados que com a morte acertaram as contas ainda em vida permaneceram eternizados através de suas obras de arte, nos legando a oportunidade de pensar a partir de suas perspectivas.
Um brinde aos mortos, um brinde à vida!